quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Um passo a frente do mesmo lugar

Saiu de casa certa que a hora era aquela. Que o dia era aquele. Estava até ligeiramente atrasada. Apressada vestiu-se, perfumou-se e foi no sol borrachudo do horizonte mole.
No sinal da encruzilhada do quinto quarteirão parou.
Sinal abriu.
Não passou.
Percebeu num olhar giro matrix mental 360º que: A mulher no outro lado da esquina descascava laranjas despreocupadamente sentada com o suor escorrendo na testa cintilante, prateada.
Do lado esquerdo um garoto i-mundo abaixava-se para pegar umas moedas que um sujeito torpe que acabara de passar rasteiro fedendo a axilas ardentes jogou pra ele apanhar.
Sentiu raiva do sorriso do moleque. Sentiu também da mulher negra e gorda sem nada mais a fazer do que ficar chupando laranja e derretendo com o chão mole.
Olhou o relógio do celular, faltavam 15 minutos e uns 7 quarteirões pela frente.
Sinal aberto.
Ela.
Imóvel há uma fração de tempo inesgotável.
Era então um balão cheio de ar solto na atmosfera delirante.
Era uma seqüela da vida moderna em transe.
Era uns cem mil amores infundados e retirantes.
Era o deserto dentro de um oásis de sonhos.
Era o absurdo lugar ao sol enquanto gente.

Um motorista de um carro verde desacelera, está na contra-mão , passa em sua frente , olhos acompanham-se por alguns segundos, tempo suficiente para ele dobrar a esquina. Seus olhos transpassavam vulgaridade. No banco de trás uma criança dormia.
Sentiu o vômito chegar na garganta e olhou a tempo pro outro lado, onde o moleque há pouco pegava do chão moedas desprezadas. Ele acabara de saquear uma barraca de doces. Encheu a mão de confeitos e se foi correndo. Igual ao moleque que roubava doces ela também roubava poesia para haver sentido continuar aquele caminho.
Ela sorriu e perseguiu com o olhar até onde ele conseguiria ir. Foi com ele até onde seus olhos não o acharem mais.
O dono da barraca jurou que iria pega-lo um dia.

Enquanto essas coisas se passavam , ela em sua analogia retumbante e serena se percebia por inteira. Do calo do dedo mindinho ao suor que escorria em sua face, que era igual ao da mulher do outro lado da rua. Ela corria quilômetros de ruas da cidade fantasma que era ela mesma.
Repleta de casas grandes e vazias, ela se transformava lentamente na cor vermelha do sinal de trânsito. Na cor verde do carro que passou. Na cor amarela da laranja que a mulher derretendo chupava.
Ali , parada e consciente, ela enfim completou sua metamorfose e líquida se foi no bueiro a um passo de seus pés.

...

Jo Gui

1 comentário:

  1. Esse está incríiiiiiiiiiiivel. Ritmo intenso, texto íntegro.Ótimo, flor!

    Beijo

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