terça-feira, 26 de outubro de 2010

* continuo depois

A doce maré da cachaça que desliza quente na garganta me lembra a infância, meus primeiros gestos da vida. Escorregando pelos desvios entre as fendas , cascos, assoalho de cimento e pólvora.
As manhãs virgens incandescentes estudando o catecismo e as fábulas de um corpo em chamas.
Durante o dia as larvas do sol escorregam ao chão em ondas de um mar imaginário. Ácido.
As pequenas pétalas ingênuas desbravam essa luz, sem pestanejar. Fazem parte dessa espécie de pasto gelatinoso a centímetros do chão. São delas a obrigação de trazer encanto aos dias salgados. De dar elasticidade ao olhar.
Na planície, cobras fluídicas acompanham contínuas a maciez da crosta. Do manto do intemperismo. Cobras de duas cabeças, dois extremos vitais. Manhãs quentes demais e noites frias.
Em terras como essa o amor vive interrompido como o clima que muda em poucas horas a cada aurora, demonstrar mais do que o necessário é desperdício de afeto. A economia é, sem dúvidas, a moeda da subsistência até nesse lugar progressivo do sentir.
A cachaça é então o sol que se pôs dentro do corpo pelas próprias mãos, Deus em si, queimando a lenha dos sonhos.

sábado, 23 de outubro de 2010

*inacabado

Naquela noite o vestido foi mais forte do que quem o vestia.
Era uma mulher que estava dentro dele sim, uma mulher da cor do vestido que entrou nele.
Ele, o vestido, a cobriu de beleza e chamou atenção, era generoso no corte e curvas, deixava a mostra os ombros e pernas, quando passava muitos pensavam "tomara que caia"...
Mas não sem razão ela se perdia nele. Estava dentro dele e ele que se mostrava nela.
Não sem razão ela o adorava, a deixava fascinante, deixava que os olhos passeassem por ela sem pudor, com o desejo de tirá-lo alterando os hormônios de quem vê além do tecido.
Não, não havia nada de anormal nele,  a cobria apenas, a vontade de ficar nua , andar nua pelas ruas da noite, na sala da sua casa isso ela fazia sempre, nua no sofá, na cozinha fazendo a janta, varrendo a varanda, no calor daquele corpo.
As flores azuis da colina branca desajeitada em meio aos corredores de pântanos, estavam esperando as mãos e os olhos do Senhor.
Não estariam daquela maneira se o sol as cobrissem, é o contrário que se tem ali, são elas que resistem e cobrem o amarelo intenso das lástimas do Sol. Sua luz é rarefeita e atinge velozmente as cabeças e a pele ressecada da imaturidade. Ela faz tricô com fios de lama, com a rouca palavra de catarro verde. Com o veludo amargo e musgo da indiferença. Ela enche os cântaros de cuspe e febres. Não sabe receber elogios nem dá o que não tem. Sua trajetória é transformar água em vinho, pedra em pão, abrigar-se,  embriagar-se e alimentar-se.
A renda da mesa esticava os cravos distorcidos nas palmas das mãos que a tocava.
Os ferrôes expulsavam da garganta a fome das vozes. Soltas. Queria sorrir como os felizes. Queria a morte das obrigações da casa, lavar os pés , cortar as unhas e pentear os cabelos para sair dali. Queria muito além da violência acostumada em si, acostumada a gostar da dor que ama amar a si.. Era mais uma suicida dos becos da música certamente, vivia a cantar diante das pias repletas de pratos sujos, dos banheiros imundos e das facas na carne. Era um homem quando paria e era uma mulher quando se deitava para a morte. Era uma criança, antes até das que estavam ali no quintal brincando com as pedras no jardim de terra.
Não quer rótulos mas aceita a marca nas palmas das mãos ou nas nádegas. Sua reza é uma língua afiada no cú da vaidade. Sangrar, sangrar, derramar o leite dos peitos, com essa fome continuada. No infinito deles e delas e também no meu, a proximidade é feita de permissão.

j. gui.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

nu

Estava na praça, estava nua na praça estava.
fazia promessas ciganas e vaiava os esqueletos
sobre a montanha de estrumes.
Delirante função da máquina que regula os nervos
ela vendia frascos do mais valioso veneno em cascatas
as várias saias da noite estampadas sobre a calcinha rosa
falava falava falava falava sem parar a fumaça translúcida
empregnada de pedras entre as costelas e as cochas áusteras
espantadas na terra deitada ali mesmo entre galhos e abutres
o sonho criava larvas.